Entrevista com Ronaldo Tenório, CEO e cofundador da Hand Talk
No Brasil, mais de 2 milhões de pessoas dependem exclusivamente da Língua Brasileira de Sinais (Libras) para se comunicar. E mesmo vivendo em um mundo cada vez mais digital, muitas delas ainda enfrentam barreiras diárias para acessar informações básicas na internet.
Foi para mudar essa realidade que surgiu a Hand Talk, empresa pioneira em soluções de acessibilidade por meio da tecnologia. Para entender melhor essa história, Ronaldo Tenório, publicitário, empreendedor social e CEO da Hand Talk, compartilha os bastidores da criação da ferramenta, os desafios da inclusão digital e os próximos passos da startup que já impactou milhões de pessoas.
Confira a entrevista completa e inspire-se!
Mari Chagas: Para começar, poderia se apresentar aos nossos leitores?
Ronaldo Tenório: Sou Ronaldo Tenório, publicitário de formação, apaixonado por tecnologia e comunicação. Minha trajetória com acessibilidade começou em 2008, ainda na faculdade, quando tive uma ideia que ficou guardada por alguns anos: criar algo que ajudasse pessoas surdas a se comunicarem melhor. Em 2012, junto com meus amigos Carlos Wanderlan e Thadeu Luz, tiramos essa ideia do papel e fundamos a Hand Talk. O aplicativo começou como um projeto simples, mas com muito propósito. Hoje, são mais de 9 milhões de downloads, funcionando como um tradutor automático e “dicionário de bolso” em Língua de Sinais, com os tradutores virtuais Hugo e Maya. Também desenvolvemos o Hand Talk Plugin, que torna sites mais acessíveis, com recursos como aumento de fonte e leitura de texto, entre outros. Com o tempo, nos tornamos referência em acessibilidade digital e criamos o Link Festival, o maior da América Latina. Em 2025, a Hand Talk foi adquirida pela Sorenson, uma gigante global em soluções para pessoas surdas. Essa união representa uma expansão e uma oportunidade de potencializar nosso impacto. Sou movido pela ideia de que a tecnologia pode — e deve — ser usada para a inclusão.
MC: Como nasceu e qual foi o propósito da Hand Talk?
RT: A Hand Talk nasceu em 2012, fruto de uma inquietação: como usar a tecnologia para resolver problemas reais de comunicação? Juntei-me aos meus amigos Carlos Wanderlan e Thadeu Luz, e começamos a pensar em como quebrar uma enorme barreira — a acessibilidade para pessoas surdas. Desde o início, nosso propósito foi claro: tornar a comunicação mais inclusiva, usando a tecnologia como ponte. Logo percebemos que isso iria muito além de um aplicativo. Sempre tivemos a preocupação de mostrar às empresas que acessibilidade não é apenas uma pauta social ou de ESG, mas uma estratégia de negócios. Quando você inclui mais pessoas, gera valor real e constrói uma marca mais forte. Com o crescimento, criamos o Link Festival (com o objetivo de abordar a importância e as tendências da tecnologia, diversidade e inclusão digitais, promovendo a acessibilidade para todos), fomos adquiridos pela Sorenson, e seguimos firmes no mesmo propósito: inclusão de verdade, na prática.
MC: Quais foram os principais desafios no início do projeto?
RT: Além dos desafios comuns de qualquer empreendedor, um dos maiores foi criar um modelo de negócio justo para as pessoas surdas que utilizam nossa ferramenta, e para os clientes que pagam por ela. Outro grande desafio foi mostrar que acessibilidade é um investimento, não um custo ou um ato de filantropia.
MC: Como surgiu a ideia do tradutor virtual?
RT: O Hugo surgiu como uma ponte de comunicação acessível, utilizando tecnologia para conectar diferentes mundos. Desde o início, pensamos nele não apenas como uma ferramenta, mas como uma interface amigável e intuitiva, capaz de traduzir para a Língua Brasileira de Sinais (Libras) de forma eficaz. Escolhemos o nome Hugo por ser curto, fácil de pronunciar em vários idiomas, e com um significado especial: deriva da palavra germânica “hug”, que significa “coração”. Isso representa bem o propósito do personagem, que é transmitir empatia, simpatia e calor humano. Com o tempo, sentimos a necessidade de ampliar a diversidade e criamos a Maya, nossa segunda tradutora virtual. Ela reforça a representatividade no nosso trabalho. O nome Maya também é curto, fácil de memorizar, e carrega simbologias como transformação, pureza e amor, alinhadas ao nosso propósito de ampliar o impacto inclusivo da nossa tecnologia.
MC: Quais tecnologias estão por trás do tradutor de Libras da Hand Talk?
RT: Desde 2016, utilizamos tecnologias avançadas de inteligência artificial para realizar traduções automáticas para Língua de Sinais. A partir de milhões de dados coletados, aplicamos técnicas de machine learning para treinar nossos modelos, permitindo conversões automatizadas e contextualizadas. Além disso, usamos processamento de linguagem natural (PLN) para que o sistema compreenda a estrutura e as nuances dos textos em linguagem oral. Isso é fundamental para gerar traduções mais fiéis, respeitando as particularidades linguísticas e culturais das Línguas de Sinais.
MC: Como funciona o processo de atualização contínua do vocabulário do Hugo e da Maya?
RT: O vocabulário é constantemente aprimorado através da plataforma colaborativa Hand Talk Community. Nela, intérpretes de Língua de Sinais gravam vídeos com novas frases e expressões, que servem como base para o treinamento e atualização do sistema. Também criamos novas animações de sinais para termos ainda não contemplados, sempre respeitando o contexto linguístico e cultural da Libras. Outro aspecto importante é a análise contínua das sugestões e correções feitas pelos usuários, o que nos permite revisar e refinar os sinais existentes. Esse processo une o conhecimento humano dos intérpretes com a tecnologia, garantindo que o Hugo e a Maya evoluam de forma precisa e inclusiva.
MC: Vocês trabalham com consultores surdos no desenvolvimento da ferramenta? Como é essa colaboração?
RT: Com certeza! Nosso time conta com pessoas surdas e linguistas que participam diretamente do desenvolvimento da ferramenta. Construímos uma base de dados robusta com milhares de sinais graças a uma equipe multidisciplinar formada por linguistas especialistas em Libras, surdos e ouvintes. Todo o conteúdo foi desenvolvido por educadores especialistas e validado por linguistas surdos e CODAs (filhos ouvintes de pais surdos), proporcionando uma experiência de aprendizado rica e acessível. Essa colaboração é fundamental para garantir a precisão e o respeito às nuances da Língua Brasileira de Sinais.
MC: Que impacto vocês já observaram no dia a dia de pessoas surdas com o uso da Hand Talk?
RT: Mais de 2 milhões de pessoas surdas dependem exclusivamente da Língua Brasileira de Sinais para acessar informações essenciais diariamente. Nosso objetivo é promover a inclusão e a autonomia desse público, proporcionando uma experiência de navegação significativamente melhorada. Cada lançamento e atualização é uma oportunidade de garantir que ninguém fique para trás na era da informação. Acreditamos firmemente que a tecnologia deve ser uma ponte, não uma barreira.
MC: Como vocês veem o papel da tecnologia na promoção da acessibilidade e inclusão?
RT: A tecnologia tem um papel essencial na construção de uma sociedade mais acessível. Quando bem aplicada, consegue remover barreiras históricas e ampliar oportunidades para todos. Na Hand Talk, enxergamos a tecnologia como uma aliada poderosa na promoção da inclusão — não apenas com Libras, mas com diversos recursos assistivos que ajudam pessoas com diferentes necessidades de comunicação e acesso à informação. Nosso compromisso é desenvolver soluções que respeitem as particularidades de cada pessoa, pensando a acessibilidade desde o início, como parte central de cada projeto.
MC: Na sua percepção, a sociedade e as empresas estão mais abertas a investir em acessibilidade?
RT: Sim. Desde a fundação da Hand Talk, percebemos uma transformação significativa. Em 2012, o tema ainda era cercado de tabus e desconhecimento. A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) era uma novidade, com aplicação prática ainda incipiente. Hoje, o cenário mudou. As empresas entendem que acessibilidade não é apenas uma exigência legal, mas também uma oportunidade estratégica. Compreendem que seus públicos são diversos e que não ser acessível significa perder conexão com milhões de pessoas, o que implica perda de mercado e relevância social. Essa mudança cultural fez com que a acessibilidade deixasse de ser vista como custo, e passasse a ser reconhecida como um investimento ético e econômico.
MC: A ferramenta já está disponível em outras línguas de sinais? Há planos de expansão internacional?
RT: Sim, atualmente nossa tecnologia também está disponível em Língua de Sinais Americana (ASL), além da Libras. Esse avanço demonstra que a questão da acessibilidade transcende fronteiras, reforçando que nossa missão pode se estender além do Brasil. Sabemos que cada país tem suas próprias línguas de sinais e contextos culturais, o que exige cuidado e adaptação. Com a aquisição pela Sorenson, que é referência global no setor, estamos ainda mais preparados para essa expansão internacional.
MC: Quais são os próximos passos ou novidades da Hand Talk que podemos esperar?
RT: Este ano tem sido fantástico! Lançamos a segunda edição do Panorama da Acessibilidade Digital, que traz um retrato atual do cenário brasileiro. Também realizamos o lançamento do Dicionário Financeiro em Libras, por meio do programa TD Impacta — uma iniciativa do Tesouro Direto e da B3, em parceria com a Artemisia. Esse projeto amplia o acesso à educação financeira para a comunidade surda. E temos um spoiler: vem aí uma terceira língua de sinais! Estamos muito animados com esse próximo passo, que permitirá que ainda mais pessoas tenham acesso a conteúdos acessíveis em suas línguas nativas. Além disso, seguimos investindo no Hands UP, nosso módulo educacional completo, já disponível em Libras e, em breve, também em ASL.
MC: O que vocês diriam para outras startups que querem desenvolver soluções inclusivas, mas não sabem por onde começar?
RT: Para startups e empresas que desejam desenvolver soluções inclusivas, o primeiro passo é iniciar o processo com uma visão clara de impacto. A inclusão não deve ser vista como um aspecto secundário, mas como uma estratégia fundamental para ampliar o alcance do seu produto e gerar valor real para os usuários. Acessibilidade é uma questão estratégica, tanto para os negócios quanto para a sociedade. Na Hand Talk, ajudamos empresas a integrarem soluções de acessibilidade de maneira prática e eficaz, eliminando barreiras de comunicação na web. Acreditamos que a tecnologia pode e deve ser usada para criar um ambiente digital mais inclusivo, e estamos prontos para apoiar startups nessa jornada, fornecendo as ferramentas necessárias para que possam dar os primeiros passos com segurança e impacto.
Acesse: https://www.handtalk.me