Criada em Curitiba, a tecnologia usa inteligência artificial integrada para detectar obstáculos, mapear ambientes e ampliar a autonomia de pessoas com deficiência visual.
A busca por mais autonomia e segurança para pessoas cegas ganhou um novo capítulo no Brasil. Em Curitiba, a RTT-AI desenvolveu a BIA, uma bengala inteligente que combina sensores, inteligência artificial e memória georreferenciada para “enxergar” obstáculos no chão e acima da cintura, aprendendo com o usuário.
O que começou como uma inquietação técnica de João Flávio de Brito Pereira logo se transformou em missão. Ao perceber que sensores, visão computacional e identificação por radiofrequência poderiam reduzir riscos e aumentar a independência, o inventor descobriu que criava mais do que um equipamento: criava segurança emocional.
A cada teste, a cada vibração que evitava um acidente, a BIA deixava de ser só tecnologia e passava a ser ferramenta de dignidade.
Nessa entrevista, João fala sobre os desafios, as descobertas e a responsabilidade de desenvolver uma solução pensada para pessoas cegas — e sobre como escuta, empatia e propósito moldaram uma inovação que pretende redefinir a mobilidade urbana inclusiva no Brasil. Confira a entrevista realizada por Sueli Parisi:
É pra Todos: João, o que despertou em você a primeira ideia de criar uma bengala com inteligência artificial?
João Flávio: Foi quando eu estava desenvolvendo um projeto de automação com sistema de RFID em um depósito de Café, para localização e gerenciamento de movimentações usando empilhadeiras, pensei que poderia utilizar a tecnologia para auxiliar pessoas com deficiência visual a localizar objetos e locais.
É pra Todos: Em que momento você percebeu que sua criação não seria apenas tecnologia, mas um trabalho profundo de inclusão?
João Flávio: Eu percebi isso no momento em que o protótipo, ainda muito simples, conseguiu “enxergar” um obstáculo e avisar o usuário. Ali, ficou claro que eu não estava apenas construindo um equipamento eletrônico, eu estava criando tranquilidade. Percebi que cada vibração ou alerta poderia evitar um acidente, reduzir uma ansiedade ou dar mais autonomia para alguém. Foi quando entendi que a BIA não era tecnologia: era inclusão acontecendo na prática.
É pra Todos: Como foi o seu primeiro contato real com o universo das pessoas cegas? Teve alguém que marcou essa trajetória?
João Flávio: Meu primeiro contato mais profundo foi durante conversas com pessoas cegas que explicaram, com sinceridade, o quanto a rua pode ser insegura, e quantas situações uma bengala tradicional não consegue resolver. Não houve uma única pessoa que marcou, mas primeira vez, disseram que “só de imaginar que isso existe, já dá esperança”. Essa frase me acompanhou desde então.
É pra Todos: Antes da BIA, como era a sua relação com projetos sociais e acessibilidade?
João Flávio: Eu sempre tive sensibilidade por tecnologia que resolve problemas reais, mas não tinha vivência direta com acessibilidade. A BIA abriu meus olhos para um universo que eu não conhecia em profundidade. Antes, eu criava sistemas e automações. Depois da BIA, comecei a criar soluções para pessoas.
É pra Todos: O que mais te motivou a transformar uma necessidade social tão específica em um projeto concreto?
João Flávio: O que me motivou foi perceber que a tecnologia que eu já dominava como: sensores, IA, RFID, Bluetooth, visão computacional, podia ser uma ponte entre a limitação e a autonomia. Eu não queria que a BIA fosse uma promessa; queria que fosse realidade. O que me movia todos os dias era saber que isso poderia mudar vidas.
É pra Todos: Qual foi o maior desafio emocional durante o desenvolvimento da BIA?
João Flávio: O maior desafio foi lidar com a responsabilidade. Eu sabia que qualquer detalhe mal resolvido poderia gerar frustração, medo ou risco para o usuário. Criar para PcDs não é criar para um mercado, é criar para pessoas que dependem da segurança do que você faz. Isso pesa, e ao mesmo tempo fortalece.
É pra Todos: Houve algum momento difícil, em que você pensou em desistir? Se sim, o que te fez seguir adiante?
João Flávio: Houve, especialmente quando os sensores falhavam, quando a arquitetura precisava ser toda refeita ou quando os custos ficavam altos. Mas eu nunca consegui, de fato, pensar em desistir. Toda vez que surgia uma barreira, eu lembrava da fala dos usuários, da esperança deles e do impacto potencial. Isso sempre me puxava de volta.
É pra Todos: Para você, qual é a diferença entre criar tecnologia e criar impacto social de verdade?
João Flávio: Criar tecnologia é resolver um problema técnico. Criar impacto social é resolver um problema humano. A tecnologia precisa existir, claro, mas o que transforma mesmo é quando ela muda a vida de alguém, quando ela dá mais autonomia, mais mobilidade, mais dignidade. E isso exige escuta, empatia e presença.
É pra Todos: Quando uma pessoa cega usa a BIA pela primeira vez, o que você deseja que ela sinta?
João Flávio: Eu desejo que ela sinta segurança. Que ela sinta que pode confiar. Que perceba que não está sozinha. E principalmente, que descubra que existe uma tecnologia criada pensando nela, no dia a dia dela, nas dores e necessidades que só quem vive sabe explicar.
É pra Todos: Como foi o processo de entender profundamente as dores e limitações das bengalas tradicionais?
João Flávio: Foi um processo de escuta. A bengala tradicional é incrível e indispensável, mas tem limitações claras: não identifica objetos altos, não reconhece ambientes, não alerta sobre riscos acima da linha da cintura. Entender essas limitações me fez perceber onde a tecnologia poderia entrar, sem substituir o que já funciona, mas complementando com inteligência.
É pra Todos: O que mais te emocionou ou surpreendeu nas conversas com usuários durante os testes?
João Flávio: O que mais me emocionou foi ver como pequenos detalhes fazem diferença gigante. Um retorno simples, como “isso me faz sentir mais seguro para sair sozinho”, já muda tudo. Também me surpreendeu a abertura deles em colaborar, em testar, em dar feedback real. Eles querem independência.
É pra Todos: Que transformação você acredita que a BIA provoca no cotidiano das pessoas que a utilizam?
João Flávio: A BIA dá autonomia, reduz ansiedade, diminui riscos e aumenta a confiança para caminhar. Ela transforma a bengala em uma extensão mais completa do usuário, que agora passa a “ouvir” e “sentir” além do toque no chão. A BIA muda a mobilidade e muda a autoestima.
É pra Todos: Você se enxerga mais como inventor, pesquisador, empreendedor ou humanista?
João Flávio: Eu me vejo como uma combinação dos quatro. Sou inventor quando busco soluções, pesquisador quando mergulho nos detalhes, empreendedor quando transformo isso em um produto real, e humanista quando lembro que tudo isso só faz sentido se ajudar alguém de verdade.
É pra Todos: Qual foi a fala ou feedback mais emocionante que você já recebeu sobre a BIA?
João Flávio: Foi quando ouvi: “Com isso, eu consigo imaginar minha vida ficando mais fácil.” Para mim, essa frase vale mais do que qualquer validação técnica.
É pra Todos: Que parte do desenvolvimento técnico te dá mais orgulho até hoje?
João Flávio: O sistema de integração total: sensores, IA local offline, RFID, BLE, GPS, vibração e som funcionando juntos em uma arquitetura leve, rápida e sem depender de internet. Orgulho de ter colocado tudo dentro de uma bengala, mantendo ela leve e funcional.
É pra Todos: Se pudesse voltar ao início da jornada, mudaria algo?
João Flávio: Eu teria me aproximado mais cedo das pessoas com deficiência visual. Elas foram essenciais para que a BIA se tornasse o que é hoje. Quanto antes eu tivesse ouvido, antes a BIA teria amadurecido.
É pra Todos: A BIA nasceu para resolver um problema, mas qual é o propósito maior que você sente que ela carrega?
João Flávio: O propósito maior é devolver autonomia a quem já perdeu muitas batalhas invisíveis. É mostrar que a tecnologia pode ser inclusiva de verdade, acessível e brasileira, feita para a realidade das nossas cidades e das nossas pessoas.
É pra Todos: Como você imagina o futuro da mobilidade para pessoas cegas daqui a 10 anos?
João Flávio: Vejo um futuro onde a mobilidade é mais inteligente, mais conectada e mais respeitosa. Uma cidade que conversa com o usuário, com sensores espalhados, calçadas inteligentes, transporte acessível e dispositivos que realmente entendem o ambiente ao redor.
É pra Todos: O que você visualiza para a evolução da BIA? Novos recursos, novos modelos?
João Flávio: Vejo a BIA evoluindo para versões mais compactas, modulares e ainda mais inteligentes. Reconhecimento avançado, integração com infraestruturas urbanas, sensores externos, aplicativos para familiares, alertas preventivos e modelos para diferentes perfis de usuários.
É pra Todos: Que mensagem você deixaria para jovens inventores que desejam criar tecnologia com sensibilidade e propósito?
João Flávio: Criar tecnologia é fácil. Difícil é criar algo que toque a vida das pessoas. Então escutem. Observem. Tenham empatia. E lembrem-se: propósito não nasce da genialidade, nasce da necessidade de alguém. Se você criar para servir, terá criado algo que vale a pena.
A Bengala Inteligente é chamada de BIA — não é só uma bengala, é um dispositivo inteligente que “enxerga” obstáculos
- A BIA funciona sem depender de internet ou celular. Ou seja, a inteligência artificial está integrada diretamente na bengala.
- Ela se adapta e aprende com o usuário.
- Usa sensores para detectar objetos e obstáculos — não só no chão, mas também acima da cintura. Isso é importante porque muitas bengalas tradicionais só “sentem” o que está no nível do chão.
- Cria um tipo de “túnel virtual 3D” à frente do usuário para mapear seu entorno.
- Tem memória interna com dados georreferenciados: pontos de ônibus, semáforos, estabelecimentos, etc.
- Pode ser adaptada em quase todos as bengalas de mercado.
Escrito por:
Sueli Parisi
Head de Planejamento, Produção e Operações da Mosaiky