Um homem, um cão-guia e a força de uma vida compartilhada

Para muitos, um cão é apenas companhia. Para Marcelo Itikawa, Quim — de Joaquim — é símbolo de independência. Com ele, atravessar uma rua deixa de ser risco e vira segurança. O que para a maioria passa despercebido — um simples trajeto, um passeio comum — para essa dupla é conquista diária. Quim não é só um cão-guia. É a certeza de que ninguém caminha sozinho quando há cumplicidade.

 

“Minha vida se divide em antes e depois do Quim”, conta Marcelo. Antes dele, a bengala era o recurso que abria caminhos. Hoje, cada movimento de Marcelo é acompanhado por Quim. Um aprende a confiar no outro — e é dessa troca que nasce a autonomia dos dois. “Não é ele que cuida de mim, nem eu que cuido dele. É uma troca.”

 

Tudo começou há dois anos, em um reencontro com uma amiga de infância que já vivia com um cão-guia. Pela primeira vez, Marcelo percebeu de perto o poder transformador desses animais e como ela caminhava com segurança e independência. “Eu vi aquilo e pensei: quero isso para mim também”, lembra.

 

Curioso e inspirado, ele passou a conviver com ela e outros usuários de cão-guia, descobrindo detalhes da rotina, a sintonia entre o cão e seu tutor, e a confiança silenciosa que se constrói aos poucos. Aquela experiência foi decisiva: Marcelo se inscreveu em um instituto brasileiro especializado no treinamento e disponibilização de cães-guia, dando o primeiro passo rumo a uma nova forma de independência.

 

O processo não é simples. Passou por entrevistas, avaliações sociais e até pela inspeção da casa para checar se o espaço comportava o animal. Até que um dia foi ao encontro da equipe em um lugar público para um teste. O cão que apareceu chamava-se Quim. Marcelo não sabia, mas ele seria o parceiro definitivo. “Na hora senti uma conexão. Mas os instrutores disseram: ‘não quer dizer que ele será o seu cão, ele ainda está em treinamento’. Eu saí dali torcendo muito.”

 

Pouco tempo depois, uma mensagem de WhatsApp da assistente social do instituto mudou tudo: “Você foi aprovado. Seu cão-guia é o Quim.” Marcelo lembra que quase gritou de alegria no hospital em que trabalhava. “Meu processo foi rápido, demorou um ano. Tem gente que espera até oito anos.”

 

 

Marcelo passeia com seu cão-guia, Quim, pela calçada da Avenida Consolaçào na capital paulista. Outros pedestres e carros aparecem ao fundo, desfocados.
Marcelo e Quim — Foto: Murillo Denardo / Mosaiky

 

Aprendizado lado a lado

 

Receber um cão-guia exige dedicação: aprender comandos, cuidados, responsabilidades e, principalmente, construir vínculo afetivo. “Era o meu primeiro cachorro. Tive que aprender tudo do zero, desde a alimentação até como levá-lo ao banheiro”, resume.

 

São várias fases. Depois, os instrutores vieram acompanhá-lo na vida real: trajeto de metrô, ônibus, ida ao trabalho. Quim não funciona como GPS. Cabe ao tutor indicar o destino, e o cão conduz desviando de obstáculos, parando diante de degraus, garantindo a proteção. “O começo é cheio de medo, insegurança e até estresse. São seis meses de ajuste até que a rotina engrene de verdade. Mas depois vira uma vida só.”

 

Com o tempo, surgiram as histórias curiosas. Quim aprendeu rápido os caminhos. “Às vezes, ele passa direto pela entrada do meu prédio e para ao lado, na porta do bar em que encontrava meus amigos. Outras vezes ameaça virar na rua onde já tocamos em um pub. Aí eu tenho que corrigir: ‘hoje não, Quim’.”

 

Essa relação se fortaleceu ainda mais depois que Marcelo sofreu um acidente e precisou ficar em casa por um período. O convívio intenso trouxe novas camadas de afeto. “Comecei a ter mais tempo para, por exemplo, conversar com ele, coisa que não fazia tanto antes. Nosso vínculo cresceu. Hoje, sei que ele me lê: sente quando não estou bem, percebe meu humor. E eu sinto o dele também.”

 

Para quem acha que cães-guia trabalham demais, Marcelo tem uma resposta simples: “Ele gosta. Quando veste o peitoral, entra no modo sério. Mas, em casa ou na rua em momentos de lazer, ele é um cachorro feliz como qualquer outro — brinca, corre, descansa no sol. A diferença é que também me dá a liberdade de ser quem sou.”

 

Marcelo de braços abertos em frente do graffiti acessível que representa asas estilizadas com uma auréola sobre a cabeça e sei companheiro cão-guia, Quim, em sua frente.
Marcelo e Quim no evento Graffiti #PraCegoVer na Caixa Cultural — Foto: Murillo Denardo / Mosaiky

 

Mais que um cão, um direito

 

Apesar da legislação que garante acesso a cães-guia em locais públicos e privados, Marcelo ainda encontra desconhecimento. “Já tive problema com carro de aplicativo, restaurante, loja. Muitos não sabem que ele não é um pet, é um cão de serviço.”

 

A regra é clara: o cão pode entrar em praticamente todos os lugares, exceto áreas como UTIs, centros cirúrgicos e cozinhas industriais. Para comprovar, Marcelo carrega sempre a carteirinha de usuário, a identificação na coleira de Quim e a vacinação em dia.

 

Há orientações básicas de convivência: não tocar, não oferecer comida, não brincar com o animal enquanto ele está guiando. “Quando está a trabalho, o semblante dele muda. Fica sério, concentrado. É lindo de ver.”

 

Marcelo posando para foto no centro do teatro do evento com Quim, seu cão guia, também posando e posicionado entre suas pernas.
Marcelo e Quim no evento de exposição de pedais de guitarra vintage, “Meu Pedal Velho” — Foto: Murillo Denardo / Mosaiky

 

O futuro dessa parceria

 

Um cão-guia acompanha o tutor por cerca de oito a dez anos, até a aposentadoria. Depois, outro ciclo começa: o usuário recebe um novo parceiro e decide se mantém o anterior. “Eu sei que esse momento vai chegar. Mas até lá, quero aproveitar cada passo ao lado do Quim.”

 

Entre risadas e lembranças, Marcelo reflete sobre como sua vida mudou. “Antes eu achava que não daria certo ter um cão grande em apartamento. Hoje vejo que não só dá certo, como transformou a minha vida. É parceria. É amor.”

 

Quim é seu companheiro inseparável e guardião de sua liberdade. Juntos, eles transformam calçadas em caminhos possíveis e esquinas em destinos cheios de autonomia. O que os une não é só a necessidade, mas uma amizade tão profunda que transborda em afeto.

 

No fim, Marcelo resume a relação com uma frase que poderia servir de guia para todos: “Com o Quim, eu não apenas ando pelas ruas. Eu caminho pela vida com mais autonomia, confiança e amor.”

 

O cão guia, Quim, com o colete de serviço nas ruas de São Paulo capital.
Quim, cão-guia de Marcelo — Foto: Murillo Denardo / Mosaiky

 

SERVIÇO:

 

Como se portar diante de um cão-guia

  • Não toque nem brinque com o cão enquanto ele está trabalhando.
  • Não ofereça comida ou distrações.
  • Converse sempre com o tutor, nunca diretamente com o cão.
  • Lembre-se: ele é um cão de serviço, não um pet.

 

O que diz a lei

A Lei nº 11.126/2005 garante à pessoa com deficiência visual o direito de ingressar e permanecer com o cão-guia em transportes e locais públicos e privados de uso coletivo. O descumprimento pode gerar sanções e penalidades ao estabelecimento.

 

Como funciona o processo para ter um cão-guia no Brasil

  • Inscrição: feita em instituições habilitadas, como o Instituto Adimax.
  • Triagem: avaliação social e de espaço físico da residência.
  • Treinamento: 15 dias de imersão e 15 dias de acompanhamento na rotina real.
  • Tempo de espera: pode variar de 1 a 8 anos, dependendo da disponibilidade de cães.

 

 

Escrito por:
Cristiana Vieira
Jornalista

━  Compartilhe

Back To Top